alt

Quem a quer ver é a jogar à bola. Sportinguista ferrenha, tal como o pai e o irmão, conhece de cor o plantel do clube do coração e os dos principais rivais. Saias, nem pensar. «Não dão jeito nenhum para brincar e aleijo-me mais quando caio», justifica. As bonecas são «giras» e tem muitas, mas não fazem sombra às futeboladas, à bicicleta, aos mergulhos no tanque de rega. Aos nove anos Sara é a primeira a afirmar, com orgulho: «sou uma maria-rapaz!». Os pais e o avô paterno acham graça. Já a única avó – a materna – não partilha de tal opinião e chegou a mostrar-se preocupada junto da filha e do genro pela falta de feminilidade da neta. «Não valorizámos, achamos que ela é nova demais para se definir seja o que for. Tem é de se divertir com o que gosta!», afirma a mãe, Paula.

 

Bastante mais inquietos andam os pais do Nuno. Com cinco anos, «gosta de brincar com as meninas do jardim-de-infância e quando pega numa bola é durante cinco minutos. Com carrinhos faz umas corridas, mas do que gosta mesmo é de estar sentado a ler, a pintar, enquanto os outros rapazes andam lá fora a correr…», suspira a mãe, Maria Madalena. «A educadora já nos disse que não vê qualquer motivo para alarme, que ele está muito bem integrado na sala e que anda contente, mas não sei…»

 

Quando um rapaz se mostra fascinado por carros e camiões, bolas e action-men ou uma rapariga só quer vestir cor-de-rosa e brincar às princesas ninguém na família se mostra particularmente preocupado. Mas se isso não acontece e a criança apresenta comportamentos e preferências fora do que é habitualmente visto no seu género, a inquietação pode surgir. «Não fujamos às palavras. Nestas situações, o que aparece no espírito dos pais é o fantasma da homossexualidade». De forma direta, a psicóloga clínica Teresa Paula Marques aponta o motivo que leva muitas famílias aos consultórios, mesmo se são incapazes de verbalizar os receios que as levam a pedir ajuda. «É preciso, em primeiro lugar, desmitificar a ideia de que a orientação sexual de um indivíduo se encontra relacionada com gostos e atitudes e muito menos com princípios de educação, especialmente durante os anos formativos. E, embora ainda não se saiba concretamente o que está na base, não se trata de uma escolha. Costumo dizer que se assim fosse não haveria homossexuais porque seria uma opção tão difícil que ninguém a tomaria», acrescenta.

 

Em paralelo, afirma, sair do que é considerado como «comportamentos normais» não significa que a criança tenha dúvidas sobre a que género biológico pertence. Embora seja uma aprendizagem demorada no tempo (ver caixa), quando chegam à idade escolar, as características físicas de ambos os sexos e a sua permanência são dados absolutamente claros. Por outras palavras, uma menina gostar de subir às árvores ou um menino brincar aos cozinhados em nada indica que tem dúvidas sobre a que sexo pertence ou faz prever como vai viver a sua sexualidade futura. Então, por que motivo a grande maioria prefere brincadeiras, roupas e até amizades que se inserem no esperado do seu sexo? Tudo isso faz parte de um longo e complexo processo que se chama socialização de género.

 

 

Género biológico, género social

 

O género de cada ser humano – isto é o sexo a que pertence – é definido biologicamente no momento da conceção. E embora seja, na esmagadora maioria dos casos, assumido e aceite pelo indivíduo, está longe de ser o determinante exclusivo do seu comportamento, gostos e manifestações sociais. Pensadores de vários campos – com destaque para a Psicologia e Sociologia – são quase unânimes a considerar que a observação e imitação dos padrões adultos (numa primeira fase) e as atitudes que levam a recompensas ou sanções (numa segunda fase) compõem a equação do género social.

 

«A incorporação dos valores de uma determinada sociedade determina, em grande parte, os nossos comportamentos desde a infância mais precoce», afirma a socióloga Patrícia Miranda, ressalvando que mesmo «em sociedades igualitárias e de livre escolha como a nossa, são passados ensinamentos, sanções e fronteiras que são difíceis de ultrapassar». Como vestir um rapaz de cor-de-rosa, por exemplo. E são esses ensinamentos, sanções e fronteiras que indicam aos mais novos os comportamentos sociais que os farão integrar-se e aqueles que devem evitar se não querem ser ostracizados.

 

Por outras palavas, se, desde que nasce uma menina é chamada de ‘princesa’, se nos brinquedos dominam as bonecas ou se apenas vê a mãe a cozinhar e a limpar, vai mais tarde ou mais cedo replicar esses padrões e agir em conformidade com o que acha que é dela esperado. O mesmo se passa com um rapaz que tem um guarda-roupa cheio de azul, um caixote de brinquedos cheio de camiões e um pai fanático por futebol: rapidamente escolhe «roupa de rapaz», fica especialista em veículos motorizados e entusiasta da bola.

 

A este propósito, Teresa Paula Marques aponta o futebol como «um grande agente de socialização» do sexo masculino. «É quase como a confirmação de que aquela criança ‘é um dos nossos’» e quando falha faz soar as sirenes de alerta na cabeça dos adultos. É o que acontece com os pais do Nuno e muitos outros. Mas os sobressaltos podem não se limitar à família e surgem, por vezes, junto de quem menos se espera.

 

A psicóloga recorda um caso que classifica como de «quase impensável» por ter sido protagonizado por profissionais do sector educativo. «Chegou-me à consulta um casal com um filho em idade pré-escolar, que tinha sido ‘alertado’ pelo colégio para os comportamentos alegadamente efeminados da criança, porque esta não gostava de jogar à bola. As coisas chegaram a um ponto tal que foi sugerido mesmo que as atitudes do menino não se enquadravam naquela escola e que os pais teriam de ‘fazer alguma coisa’ se quisessem que ele continuasse no estabelecimento.»

 

Aflitos e convencidos de que algo de muito errado se passava, pai e mãe «estavam a colocar em causa o seu desempenho enquanto educadores, a questionarem-se sobre o que estariam a fazer de errado. Estes sentimentos são comuns em família, nos casos em que as crianças agem fora do que é socialmente aceite. O que é complicado é que surjam num contexto de indivíduos com formação educativa», defende. Em consequência, Teresa Paula Marques procurou ajudar o casal a compreender de que, muito provavelmente, nada de mais estava a acontecer com o filho mas que certamente tinham de ser feitas alterações nas opções escolares.

 

 

Duplo padrão

 

Patrícia Miranda é autora de uma tese de doutoramento sobre a construção da identidade de género nas crianças, que teve por base o estudo de uma turma de 5.º ano em Viseu. E se é patente «uma evolução na aceitação da diversidade», as crianças que fogem aos padrões estabelecidos continuam a ser apontadas a dedo, em especial pelos seus pares. É por isso que uma das crianças entrevistadas, um rapaz, revelou não achar mal chorar, mas ter vergonha de o fazer em público.

 

De qualquer forma, adianta, é possível observar um duplo padrão, que classifica de modo diferente os sinais mostrados por raparigas e por rapazes, num fenómeno mais visível quando se tratam das reações de adultos. «Existe uma maior liberdade de experimentação para o sexo feminino do que para o sexo masculino. Quando são os meninos, os pais consideram mais perigoso na não diferenciação de género». É por isso que a família da Sara até acha graça à «maria-rapaz» que tem em casa e a do Nuno não acha graça nenhuma ao facto de ele não ligar ao futebol.

 

A socióloga defende a ideia de que as mentalidades têm vindo a mudar mas adverte que existe ainda um longo caminho a percorrer até que os princípios igualitários se reflitam na construção da identidade de género. «Enquanto os temores da orientação sexual futura e do correspondente julgamento social permanecerem, é difícil passar para as crianças a mensagem sólida de que todas as expressões e comportamentos são válidos. Podemos até adotar o discurso da igualdade entre os géneros mas se, ao mesmo tempo, mostrarmos reticências quando os mais novos a exercem, o sinal que damos é de que essa igualdade não é aceitável».

 

Na mesma linha, Teresa Paula Marques fala de «duas velocidades nos modelos de educação, uma teórica e outra prática» e da dificuldade que é passar de uma para a outra. «Se a criança ouve os pais a dizerem que todos somos iguais, temos os mesmos direitos, podemos gostar de tudo e depois vê esses mesmos pais a dividirem tarefas baseados no género ou a franzirem o sobrolho quando os comportamentos não seguem um determinado padrão, chega à conclusão do que o que vale são os exemplos, não o discurso, e vai seguir os exemplos», afirma.

 

Patrícia Miranda deixa, por sua vez, um alerta: «ao estreitarmos, de forma consciente ou inconsciente, os campos de experimentação das crianças, não estaremos a limitar o seu enriquecimento formativo e o seu futuro enquanto membros de uma sociedade cada vez mais recetiva a todas as formas de ser e de estar?».

Três patamares de desenvolvimento

 

Lawrence Kohlberg, um dos mais conhecidos investigadores sobre desenvolvimento cognitivo, aponta três estágios no estabelecimento da identidade de género:

 

•             Até aos três anos = É formada a identidade do género, ou seja, a criança ganha consciência de que é um rapaz ou uma rapariga e consegue classificar os outros conforme o género. Porém, têm dificuldades em compreender que o género é uma característica permanente e que se o masculino e o feminino têm corpos diferentes também partilham muitas características;

 

•             Dos quatro aos seis anos = As crianças estão especialmente atentas aos comportamentos relacionados com os dois géneros. Se é habitual que apenas vejam mulheres a cozinhar e homens a tratar dos automóveis é natural que relacionem estas atividades com cada um dos sexos. O inverso também é válido, ou seja, se os comportamentos não forem limitados a um género, a criança não faz qualquer ligação;

 

•             A partir dos seis anos = A maior parte das crianças compreende que o género é uma característica permanente e que não é passível de ser alterada através de opções como o corte de cabelo ou o vestuário.

  

Uma questão de hormonas?

 

Psicólogos e sociólogos colocam a tónica da construção de identidade de género nas experiências que a criança tem ao longo do seu desenvolvimento. No entanto, uma linha das neurociências defende que as hormonas podem desempenhar um papel de diferenciação entre os cérebros masculino e feminino.

 

A investigadora norte-americana Lise Eliot revela que os fetos do sexo masculino apresentam um aumento de testosterona entre as seis semanas de gestação e o final do segundo trimestre. Para além disso, poucos meses após o nascimento, meninos e meninas experimentam uma «mini-puberdade», com aumentos de testosterona e de estrogénio, respetivamente. Aos seis meses, esse pico diminui e só volta a manifestar-se na pré-adolescência. De qualquer forma, Eliot – que não deixa para trás o papel da socialização – acredita que estas alterações hormonais precoces são suficientes para causar modificações cerebrais, cujos reflexos se apresentam durante a infância e idade adulta.

 

Leitura: Será que a Joaninha tem uma pilinha?

Editora: Dinalivro

alt

 

http://www.paisefilhos.pt/index.php/criancas/dos-3-aos-5-anos/6113-o-genero-nao-se-escolhe-vive-se

publicado por salinhadossonhos às 19:05