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Temem o escuro, os ladrões, os monstros debaixo da cama. Assustam-se com os ruídos fortes e com as ondas do mar. Receiam o primeiro dia de escola. Ter medos e aprender a ultrapassá-los faz parte do crescimento das crianças.

 

 

 

 

A água do banho não chegava para a assustar. Mas a Francisca nunca gostou do azul profundo das piscinas de férias. E muito menos da altura das ondas do mar. «Não!», repetia a cada tentativa dos pais. Não queria. Tinha medo da água. Chorava assim que os salpicos lhe cobriam as pernas. Entrava em pânico quando sentia a barriga molhada. Aprendeu a fugir das ondas no mesmo ano em que começou a andar.

 

«A Francisca nunca apanhou nenhum susto, mas sempre teve pavor de água», diz a mãe, Inês Almeida Ramos. O colo dos pais amenizava a ansiedade, mas a cintura marcava o limite. «Chorava, dizia que queria sair.». Nunca se aproximou do rebordo da piscina da casa de férias. Na praia da Falésia, no Algarve, onde a família passa um mês inteiro todos os verões, preferia brincar com a areia.

 

O tempo passou, o medo manteve-se. Só no último Verão, já com três anos feitos, a Francisca começou a aventurar-se. O primo Bernardo, um pouco mais velho, convidava-a, insistia, desafiava-a. E ela deixava-se ir, com a mão bem agarrada ao braço da tia. «Connosco, ela sentia-se mais à-vontade para dizer que tinha medo. Foi com os primos mais velhos que começou a ir. Mas nunca deixava a água subir acima do nível da barriga», conta a mãe.

 

Com o primeiro passo já dado, Francisca venceu o medo nas visitas da escola às praias da Costa da Caparica. «Ela gosta de ser líder, na escola é mais destemida e até um bocadinho mandona. Estavam lá miúdos mais velhos, não queria mostrar-se assustada», diz a mãe.

 

Inês está aliviada e entusiasma-se com os progressos da filha. A história de um irmão atirado à piscina em bebé e que se recusou a entrar na água até aos 12 anos vem-lhe várias vezes à memória. «Foi empurrado por outro irmão. Deixou de confiar nas pessoas. Estávamos sempre todos na água e ele nunca vinha. Isso marcou-me um bocado», conta. Por isso, nunca forçou a filha, tentava molhá-la, convidava-a, mas nunca a obrigava.

 

 

 

Medos: inconscientes ou naturais?

 

«Os medos, quando estão de acordo com a idade, protegem as crianças dos perigos. São uma espécie de anjos da guarda», explica a psicopedagoga Joana Sarmento Moreira. Amiga da mãe da Francisca, foi uma das pessoas que aconselhou Inês a não forçar a filha com os mergulhos. «É muito importante os pais saberem dar tempo aos filhos e perceberem que ter medos faz parte do seu crescimento», diz.

 

As crianças transportam na sua herança genética medos que as impedem de se sentir atraídas por répteis, de se aventurar no escuro ou se lançar das alturas. E apreendem novos receios com a experiência e a socialização. Registam que o fogo queima quando o calor na mão aumenta, aprendem a não se aproximar do lume ao observar que a mãe também nunca lhe toca.

 

«Se ficam expostas ao perigo, as crianças percebem a sua vulnerabilidade. Mas estão também muito atentas às reações dos pais. Muitas vezes, começam a ter medo, não por um qualquer capricho bizarro, mas porque estão muito alerta para os comportamentos da mãe», diz o psicólogo Eduardo Sá.

 

Marco tem hoje nove anos e um medo enorme de ladrões que só muito lentamente está a conseguir ultrapassar. Receia estar em casas muito grandes. Teme o que pode estar além de uma porta ou por trás de uma esquina. É assim desde os cinco anos.

 

Marco nunca esqueceu o dia em que dois homens entraram na casa da avó, ao lado da sua, para a roubarem. Foi numa noite de passagem de ano. Os ladrões entraram com o à-vontade de quem sabia que os donos da casa iam todos os fins de semana para fora. Mas foram surpreendidos pela presença do casal. «O Marco ouviu os gritos da avó e assistiu a tudo», conta a mãe, que prefere identificar-se apenas com o primeiro nome, Carla.

 

Da janela, Marco viu o pai e o tio saltarem o muro e desaparecerem atrás dos dois homens pelo terreno que se estende pelas traseiras das vivendas. Dentro de casa, assistiu ao nervosismo das mulheres que ficaram para trás, sem saber o que estava a acontecer. Já pela noite dentro, viu o pai chegar com um olho negro e o tio com sangue na camisa. «Não os conseguiram apanhar. Conversámos com os vizinhos e pusemos uma vedação alta nos quintais. Conversei com ele e expliquei-lhe que assim os ladrões não conseguiam voltar a entrar. Achei que o assunto estava resolvido», conta a mãe. Mas o Marco mudou. Assustava-se com os barulhos à noite. Deixou de querer dormir sozinho. Tinha pesadelos, dizia que via pessoas. «Ele era muito pequeno e eu não tive a noção que todas essas coisas eram medo dos ladrões», conta a mãe.

 

Foi pela própria mão, anos mais tarde, que o Marco confessou ao papel o que continuava a preocupá-lo. «Sou professora na escola onde ele anda. Há uns tempos, assisti a uma apresentação sobre os medos das crianças numa acção de formação. O psicólogo tinha falado previamente com as professoras. Pediu-lhes que os miúdos escrevessem uma composição sobre o medo. Um dos textos seleccionados e lido em voz alta era o do Marco. Ele escreveu: A minha mãe diz para eu não ter medo, mas eu não consigo. Quero dizer que não tenho medo, mas ainda tenho», conta Carla.

 

O alerta estava dado. O resto tem sido fruto de muito trabalho. Marco mudou-se de Odivelas para a Ericeira. Mora numa casa ampla onde consegue ver todas as portas a partir do hall de entrada. Tem um cão no jardim que ladra aos desconhecidos. E até já fica sozinho em casa de vez em quando. A psicóloga da escola tem dado uma ajuda.

 

http://www.paisefilhos.pt/index.php/criancas/dos-3-aos-5-anos/5964-mae-tenho-medo

publicado por salinhadossonhos às 12:04