Escrito por Eduardo Sá Quarta, 27 Março 201
Como as crianças merecem muito tempo dos pais «um dia», para elas, nunca será tarde demais.

1. A certa altura, o Rei leão e o leãozinho subiram, pachorrentos, a um planalto. Por momentos, pararam de conversar e o olhar perdeu-se deles. De lá de cima, avistava-se uma extraordinária pradaria, com animais pululantes, como se o mundo fosse, naturalmente, assim: sereno e folião, ao mesmo tempo. De olhar terno, o Rei leão explicou-lhe que, mais tarde, aquele reino seria seu. O leãozinho, engasgado com tamanha bondade, perguntou se isso queria dizer que, um dia, podia vir a fazer tudo aquilo que quisesse. Ao que o Rei respondeu:
- Não! Podes fazer mais… do que tudo aquilo que quiseres.
Sempre que lhes querem segurar o furor, os pais oferecem aos filhos um pouco mais que os seus desejos. É assim que um planalto se converte numa casa de chocolate. Ou se transforma num castelo que desaba, se preferirem.
2. O Padre António Vieira dizia que «não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba». E tem razão. Mas o carinho que damos ao tempo tem muito a ver com quem nos acarinha com tempo: é a forma como somos amados pela vida que a torna amável para nós.
Como as crianças merecem muito tempo dos pais «um dia», para elas, nunca será tarde demais. Na verdade, é uma forma de dizerem - para si próprias - que, logo que lhes apeteça, farão tudo aquilo que quiserem. Mas porque, entretanto, foram acumulando muitas coisas para fazer (ou porque deixaram de ter quem lhes acarinhasse o tempo como só os pais sabem fazer, quando somos pequeninos) «um dia» - para a maioria das crianças – fica para mais tarde; algures na adolescência. Depois, esperam que os 18 anos apaguem a distância entre sonhar fugir de casa e poder sair. Chegadas lá, imaginam que, não dependendo da mesada dos pais, poderão (finalmente) fazer aquilo que quiserem. Mas, logo depois, seja pelo que for, tudo aquilo que imaginavam querer espera e espera. A seguir, tornam-se pais. E «um dia» fica sempre para mais tarde. Até que o futuro e a carreira dos filhos esconde o «tarde demais» que se torna cada «mais que tudo aquilo que quiseres» que os pais desejaram para si.
3. Apesar de tantos «tarde demais», eu acho que, secretamente, cada pai imagina que tem, ainda, o tempo todo que quiser, como se fosse uma criança que imagina que um desejo depende só dum apetite. Depois de várias mortes à sua volta (mesmo que se deem devagarinho) cada pai continua a viver como se, para os seus sonhos, quase nada se tivesse, realmente, transformado. E, hoje como dantes, a guardar para … «um dia» tudo aquilo não vive. Na verdade, passa muito tempo até que se descubra que «um dia» é, quase sempre, nunca mais!
4. Compreendo que as pessoas se envergonhem, perante si próprias, sempre que «um dia» fique para nunca mais. Parece-me que, quando é assim, os seus verbos se atulham de pretéritos. Com muitos: «gostava», «fui» ou «queria». E o mesmo «desculpe…» antes de qualquer pedido. Sempre que a vida se perde em pretéritos, talvez o futuro se torne uma forma de conjugar a tristeza com pó arroz. Na verdade, o melhor do mundo é o futuro (se ele for uma forma de escalonar os sonhos, tornando-os exequíveis). Mas o presente talvez seja, entre todos, o mais importante dos tempos verbais. Não no sentido de viver cada dia como se fosse o último, mas porque cada dia é, realmente, quase único. O que o Rei leão não disse ao leãozinho é que o «mais que tudo aquilo que quiseres» não é um corrupio de desejos. Mas o que torna único cada dia é que alguém faça de planalto só para nós. E que se ama a vida quando se diz eu e tu ao mesmo tempo. Na verdade, o que ele devia mesmo ter-lhe dito é que o «nós» não é a primeira pessoa do plural mas o plural na primeira pessoa.
5. Seja como lugar de chegada ou como um presságio que nos persegue, o destino não é amigo do futuro. Da mesma forma que cada viagem é mais importante que o seu destino, também com o amor será assim. É por isso que nunca somos amados: somos amáveis, o que faz toda a diferença.
Cada «mais que tudo aquilo que quiseres» da nossa vida só se concretiza com a esperança de que, «um dia», alguém nos torne amáveis (com que nos ajude a apanhar tudo aquilo que, até aí, parecia ter ficado aconchegado num qualquer «tarde demais».) É por isso que esperança e destino nunca se confundem. Esperança é comunhão: um planalto. O destino, solidão: um castelo que desaba. A esperança torna os sonhos plurais na primeira pessoa. O destino é quando as feridas mandam mais que os próprios sonhos.
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