Escrito por Eduardo Sá Quinta, 26 Junho 2014
O que me parece fascinante é que as crianças, logo depois de dizerem “porquê”, pareçam tão capazes de dizer “provavelmente”.
Por outras palavras: sentir é interpretar. E, sendo assim, aprende-se a ler nos olhos de quem nos lê. Os livros, esses, lêem-se nos olhos de quem no-los lê.
Vou contar-vos uma história do meu querido amigo João Carlos Gomes Pedro. Irei, seguramente, adulterá-la. Porque não conseguirei reproduzir todo o afeto com que a escutei. Mas a sabedoria que ressalta da história é tão contagiante que decidi, com a licença do meu amigo, compartilhá-la convosco.)
1. Era uma vez um rei que reuniu todos os sábios do seu reino e pediu-lhes que resumissem toda a sua biblioteca num só livro. Os sábios protestaram, considerando que a tarefa estaria muito para além do seu engenho. Como o rei não lhes deu alternativa, resignaram-se e, cinco anos depois, trouxeram-lhe um livro com 600 páginas. O rei, depois de o ler, chamou-os. E pediu-lhes que o resumissem numa folha. Os sábios, se bem que tenham protestado, recolheram-se por cinco anos mais, tentando cumprir a sua vontade. Depois de ler a folha, o rei convocou-os, uma última vez. E pediu-lhes que a sintetizassem numa única palavra. Recolhidos de novo, os sábios, ao fim de cinco anos, regressaram com tão engenhosa tarefa já vencida. Entregaram--lhe um pequeno papel, onde, com delicadeza, a traziam escrita. O rei, desdobrou o papel e leu-a, de forma atenta e curiosa. A palavra era: “provavelmente”.
2. Há muito tempo, chamava a atenção para o modo como as crianças, primeiro, aprendem a dizer “não”. Só depois, dizem “sim”. Mais tarde, usam o “porquê”. Para que, de seguida, digam “eu”. “Provavelmente” será, entre todas as palavras, aquela para a qual as crianças estão aptas, desde sempre, para compreender mas só quando se tornam sábias a irão aprender a usar. Talvez porque só quem diga “não” e “sim”, “porquê” e “eu”, ao mesmo tempo, consiga – então – dizer “provavelmente”.
3. O que me parece fascinante é que as crianças, logo depois de dizerem “porquê”, pareçam tão capazes de dizer “provavelmente”. Dizem--no, de forma mais ou menos implícita, quando, por exemplo, ainda muito pequenas, usam “termos caros” e, sem saberem o seu significado os utilizam de forma irrepreensível. Tudo como se dissessem, por outras palavras, “provavelmente”. Porque é que, então, quem está tão apto, desde tão cedo, para ler o mundo e as pessoas, se torna, tantas vezes, incapaz de ser amigo da leitura? Se nascemos tão capazes de ler o significado das palavras, e de o ler nas entrelinhas, o que fará com que as palavras se tornem, tantas vezes, inimigas da leitura? Porque é que, aparentemente, a escola – quando não deixa que se converse ou quando manda de castigo um aluno para a biblioteca – parece estragar a capacidade que todos temos para dizer “provavelmente”?
4. Não é possível que as crianças aprendam sobre tudo enquanto desconhecem quem têm junto a si. Sendo assim, aprendem a ler quando, na dança de apelos que existe entre o bebé e a mãe, ganha sentido uma fórmula cara a Hugo: “lê-me, lê-me para que eu te possa ler”. Antes de lerem palavras as crianças interpretam sentimentos, numa reciprocidade em que é expectável que a mãe lhos legende de acordo com aquilo que eles sentem.
Ler não é, então, juntar letras e palavras: é conjugar sentimentos. Mas, sendo assim, quando começamos a ler: quando se articulam os sons e os transformamos em palavras, ou quando as interpretamos? Quando interpretamos as palavras. Mas será que interpretamos os outros sem nos interpretarmos neles? Não! E é possível ler sem escutar? É.
5. Por outras palavras: sentir é interpretar. E, sendo assim, aprende-se a ler nos olhos de quem nos lê. Os livros, esses, lêem-se nos olhos de quem no-los lê. Ou, ainda (como se fosse uma operação matemática): ver x escutar = ler! Isto é: a educação musical e a educação visual são os melhores amigos da leitura. Já escrever supõe que sinto, que vejo, que escuto e que desenho. Ou seja: um corpo mal-educado para a tonicidade, para o movimento e para o ritmo zanga-se com a escrita. Já escutar e desenhar, dizer “não” e “sim”, “porquê” e “eu” tornam-nos, então, capazes de transformar todos os livros num só “provavelmente”.